Uma Corrida de Toiros!

A passada noite de 4 de Agosto, na Praça de Toiros da Figueira da Foz ficou indelevelmente marcada por um fantástico curro de toiros de Manuel Veiga, os quais, embora não absolutamente bravos no seu conjunto (destacaram-se o terceiro e, sobretudo, o grandioso e perfeito quinto), ofereceram toda uma panóplia de características que mereciam ter sido aproveitadas com mais brilhantismo e eficácia pela terna actuante, composta por Rui Fernandes, João Ribeiro Telles Jr. e Francisco Palha. No respeitante aos Grupos de Forcados, de Vila Franca de Xira e do Ribatejo, foram os primeiros os que melhor entenderam e dominaram o poder com que a maior parte dos “Veigas” chegaram às pegas, tendo razões para sair bastante satisfeitos com a sua prestação, frente a toiros que entraram sempre com muita velocidade e força e que derrotaram de forma violenta, escalando esses derrotes à medida que sentiam não terem “peso” em cima por parte das ajudas. Uma questão muito importante a destacar é igualmente a irrepreensível apresentação dos animais provenientes da Herdade das Talasnas, os quais, dando uma média de peso de “apenas” 475 kgs (1º, 520 Kgs; 2º, 485 Kgs; 3º, 455 Kgs; 4º, 450 Kgs; 5º, 460 Kgs; 6º, 480 Kgs), vieram mais uma vez demonstrar que a carne, para o talho, a seriedade, o trapio e a harmonia, para a Praça, onde um peso ideal deixa os toiros transmitir tudo o que de bom, ou mau, levam dentro, assim haja oponentes à altura de os entenderem e lidarem na verdadeira acepção da palavra. E isso, infelizmente, faltou em muitos momentos…

 

Rui Fernandes abriu o festejo frente aquele que foi o exemplar mais reservado da noite, apenas perseguindo as montadas com mais intensidade quando sentia poder “fazer presa” e, sobretudo, apertando para terrenos de tábuas, demonstrando claramente um certo grau de mansidão que acusou ainda mais nos momentos da ferragem, em que se defendia e derrotava com violência. E foi exactamente por este comportamento, reservado e sério nas suas dificuldades, que o “Veiga” transmitiu, ficando a ideia de um Rui Fernandes voluntarioso na brega, mas desconfiado nas reuniões, abrindo demasiado os quarteios, excepto no segundo e terceiro curtos, onde entrou com decisão, sofrendo um forte derrote na casaca, no primeiro destes. Agradece-se, no entanto, a sobriedade da actuação, sem os espaventos que muitas vezes lhe são conhecidos.

 

Pelo Grupo de Vila Franca, frente a um animal no qual se adivinhavam complicações, estreou-se a pegar o forcado João Luz, enorme na sua primeira tentativa, aguentando perfeitamente a poderosa investida do toiro, que arrancou logo que o viu, para se fechar sem mácula e com decisão, mas não conseguindo ficar, após um violentíssimo derrote para cima, seguindo de um outro, de chicote, para baixo, tudo isto a uma impressionante velocidade, sem que a viagem chegasse perto dos ajudas. Ao segundo intento, muito sereno, conseguiu ganhar mais terreno, logrando assim carregar a sorte a seu prazer e abraçando depois todo o ímpeto da “locomotiva” que, mais uma vez, imprimiu uma viagem extremamente veloz, sendo necessária toda a coesão e eficácia dos ajudas, com destaque para o “primeiras” Frederico Murta, essencial a compor, e para o conjunto dos terceiras, que junto a tábuas receberam o maior impacto, fechando a pega com máxima decisão e eficácia. Na volta à arena, nem o enorme hematoma na cara mascarava a felicidade de quem finalmente via cumprido o sonho de pegar envergando a jaqueta do Grupo da sua terra. A forma como, ao passar junto dos colegas, a agarrou e mostrou disse tudo…

 

O segundo da noite voltou a apresentar um comportamento distraído de saída, acusando alguma querença em tábuas. Foi, no entanto, um toiro que perseguiu com muito mais entrega, especialmente após o momento do ferro, emprestando uma outra transmissão. Considerando estas condições, João Ribeiro Telles Jr. desenvolveu aquela que talvez tenha sido, em conjunto, a melhor lide da noite. Após dois compridos sem grandes preocupações “estilísticas” ou de proximidade, tentando descortinar as verdadeiras características do toiro (é para isso que, essencialmente, servem, embora todos os gostemos de os ver, pelo menos, melhor preparados), arrancou para uma interessante série de três curtos. Os dois primeiros, partindo sempre devagar e com suavidade e cravando no centro da Praça, recorrendo a ligeiríssimas batidas, que aqui se aceitam, quer porque nas reuniões teve sempre o toiro debaixo de si, cravando ao estribo, quer porque a forma como o oponente se reservava no momento da cravagem exigiu sempre um “incentivo” extra que o fizesse entrar mais dentro das sortes. Expôs no terceiro com o “Veiga” a partir de curros, sofrendo ligeiro toque, alargou demais no quarto e rematou com um bom quinto, desta vez sem necessitar de recorrer à batida, rodando bem ao piton e saindo airoso da sorte. Comparando as duas primeiras lides, considerando que, essencialmente nos momentos em que entravam na jurisdição dos cavalos, ambos os toiros apresentaram comportamento muito semelhante, poderemos dizer que o “Ginja” se superiorizou a Rui Fernandes, embora sem assinar uma actuação triunfal.

 

Nuno Amaro, dos Amadores do Ribatejo, efectuou quatro tentativas plenas de garra e vontade, apesar de nas três primeiras receber as investidas um pouco de lado. Sobretudo nos dois primeiros intentos aguentou toda a espécie de violentos derrotes, ante a ineficácia e falta de decisão dos ajudas, que viram, na primeira ocasião como o toiro veio até tábuas e voltou ainda em direcção ao meio, sem que ninguém verdadeiramente se fechasse e, na segunda, como se parou, despachando quatro a cinco vezes o forcado para o ar, ante a tarda reacção do resto do Grupo. Na terceira tentativa, o primeiro ajuda encosta-se, mas os restantes elementos dão demasiada distância e o Nuno vem “de chocalho” novamente até tábuas, sem que algum dos companheiros venha a ajudar com decisão. Consumam à quarta, com todo o Grupo carregado não sem que o conjunto de terceiras voltasse a permitir muitas veleidades e derrotes ao oponente. Volta ao forcado da cara, que poderemos considerar justa, se a virmos como prémio individual ou bastante desapropriada, se acharmos que esta deve ser recompensa e reflexo do trabalho de todo o conjunto.

 

Confesso que vinha à Figueira da Foz com grande motivação para ver o Francisco Palha, após o seu incontestável triunfo na Corrida do Colete Encarnado em Vila Franca, baseado num conceito e numa “coerência” que até então não lhe conhecia. A verdade é que, embora não tenha saído defraudado, tão pouco mantive os níveis de entusiasmo, sobretudo considerando que o terceiro exemplar da noite, seu primeiro, foi um grande toiro, harmónico de trapio, perseguindo com intenção e transmissão na brega e após os ferros e muito nobre nos momentos das reuniões. Frente a tal material, cravou os dois compridos em tiras desajustadas e não preparando minimamente os cites, sofrendo um ligeiro toque no primeiro curto, parecendo que, por recusa do cavalo, deixou vir o toiro até demasiado perto das tábuas, cortando a trajectória de saída. O segundo foi melhor, colocado com correcção a meio da Praça, para logo trocar de cavalo, o que pareceu indicar que o ginete não estava realmente confortável com o comportamento da montada. As reuniões dos dois ferros seguintes foram muito boas, mas ambos pecaram por viagens num galope demasiado acelerado, que lhes retirou brilho. O melhor momento da actuação veio no quinto, já com o “Veiga” mais parado, arrancando com tranquilidade e “atracando-se” de toiro e, agora sim, deixando a bandarilha com a verdade e a emoção que lhe descobri na velhinha “Palha Blanco”.

 

Envergando a jaqueta do Grupo de Vila Franca, apresentou-se o jovem Guilherme Dotti, frente a um oponente que, pela nobreza e prontidão demonstradas, pareceu estar talhado à sua maneira templada e pronunciada de recuar muito e consentir ainda mais nos momentos das reuniões. Não se enganou na escolha o Cabo e a pega só não foi concretizada à primeira tentativa porque, levada que foi a investida e a reunião praticamente até ao meio do Grupo (mais uma vez a recuar de forma impressionante, talvez até demais), acabou por sofrer um violento derrote lateral num momento em que os companheiros já se deviam ter feito presentes, evitando que saísse da cara. Repetiu a “fórmula” no segundo intento e o toiro voltou a derrotar com muita força, já no meio dos ajudas, contando desta vez com a extraordinária e providencial colaboração do “terceiras ao meio”, João Maria Santos, entrando e abafando no momento exacto em que o forcado da cara já parecia em risco de voltar a ser desfeiteado. Uma boa pega!

 

Iniciou-se a segunda parte do festejo com um exemplar que transmitiu muito, a espaços, revelando o mesmo comportamento inicial de distracção e tendência a tábuas que os irmãos, para melhorar no meio da lide e voltando a acentuar-se no final, refugiando-se ostensivamente nos terrenos de dentro. Face a tal comportamento, destaque para a excelente brega de Rui Fernandes, que porfiou e batalhou, com inteligência e qualidade para, na maior parte dos casos, conseguir desenganar o toiro, deixando-o nos médios da Praça para a cravagem dos ferros. Residiu aqui o grande mérito de uma lide, que foi irregular no que aos momentos das reuniões respeitou e que, em definitivo, ganhou o meu completo desinteresse quando se decidiu pelo “número” de pôr o cavalo a dançar de um lado para o outro nos cites, de forma tão pronunciada que não resta mais do que a imagem de um conjunto entre cavalo e cavaleiro completamente “desengonçado”. Isso sim, a alegre assistência da Figueira respondeu com entusiasmo. Há quem diga que deve o Artista, especialmente o performativo, adaptar-se ao público que tem por diante, “oferecendo-lhe” o que este deseja. Eu tenho para mim que este tipo de artifícios são sobretudo e antes demais, uma falta de respeito para com a Arte e, por conseguinte, para com o próprio público, do qual desdenhamos, exactamente a partir do momento em que o consideramos demasiado ignorante para entender a verdadeira essência do que fazemos e optamos antes por o presentear com uma série de banalidades acessórias, simples truques de entretenimento, vazios de conteúdo ou significado…

 

Novamente pelos Amadores do Ribatejo, saltou para a pega Sérgio Carmo, o qual, a par com os restantes elementos, foi responsável pelo melhor momento do Grupo nesta noite Figueirense. Citou com serenidade, carregou no momento exacto e recuou perfeito, aguentando de forma excelente uma entrada extremamente rápida e violenta, para além de muito humilhada, a que se seguiram alguns derrotes para cima, com muita força, sendo preponderante a forma corajosa como o primeiro-ajuda absorveu o primeiro impacto, a que se seguiu uma extraordinária entrada de um dos terceiras, contando igualmente com a homogeneidade dos restantes colegas, que desta vez, fecharam sem mácula. Uma magnifica pega, pela qual todo o conjunto merece os louros.

 

Regressando ao dito anteriormente, sobre o respeito pelo público e pela Arte, óbvio é que apenas expresso uma opinião pessoal, a qual deverá estar completamente errada, pois o quinto toiro, um BRAVO em toda a acepção da palavra, que se arrancou durante toda a lide com galope, emoção e codícia, fosse de que terreno fosse, resultou totalmente desperdiçado por João Ribeiro Telles, numa brega alegre e vistosa e num conjunto de ferros aliviados, rematados com dois violinos e um palmo e ainda mais um violino, a pedido do público, que constituíram paupérrima actuação, ante um oponente merecedor da suprema honra de ser toureado com a mesma perfeição que a sua inexcedível bravura. Esperemos que o Ganadero assim o tenha entendido e o tenha feito regressar ao campo, na esperança que, de uma futura prole, outros nasçam com semelhante presença e comportamento, assim haja toureiros para os fazer brilhar! Da parte do Director de Corrida, ficou um claro lenço azul por apresentar!

 

Quem brilhou novamente a grande altura foram os forcados Vilafranquenses, por intermédio do solista Pedro Silva, que aguardou com calma que o toiro nele se fixasse, após percorrer alguns metros a “barbear” as tábuas, para carregar com decisão, receber sem defeitos a poderosa e rapidíssima investida e “aguardar”, de seguida, pelo habitual bloco das ajudas, que entraram uma a uma, nos tempos e com a vontade exactas, como um relógio afinado, desde o primeiras até ao último dos terceiras. Remate sem espinhas de uma grande noite dos homens de Vila Franca!

 

Fechou o festejo aquele que foi o menos interessante pupilo das Talasnas, por mais “pastueño”e por menor repetição nas investidas. Partia honesto e sem problemas para os ferros, carregava um pouco e logo se parava, não dando excessiva “festa”. Francisco Palha, com a sua garra habitual, iniciou a lide com uma porta-gaiola falhada, uma vez que o adversário saiu a choto e a medir, não dando hipóteses de cravar o comprido. Deu o seu máximo, sem concessões à bancada, mas a verdade é que, por comparação com os restantes irmãos no que toca à chispa, o toiro retirou importância ao seu esforço. Destaca-se o segundo curto, onde sofreu um toque por aguentar ao máximo a forma como o “Veiga” se encolheu debaixo do cavalo no momento da cravagem e o último ferro, “marca da casa”, com o toiro muito fechado, partindo de frente, do meio da Praça, cravando com verdade e rodando o piton pelo lado das tábuas, quase sem espaço de passagem, que só não foi tão emocionante como noutras ocasiões pelas condições do oponente já mencionadas.

 

Apenas uma nota: sobre esta forma de cravar de Francisco Palha, a qual atingiu o seu máximo esplendor na já mencionada Corrida do Colete Encarnado deste ano, tenho ouvido algumas considerações extremamente criticas de alguns aficionados e meios da especialidade, as quais me deixam, confesso, absolutamente estupefacto… A Pureza máxima do Toureiro, ou antes dito, da Tauromaquia (em todas as suas vertentes), é dada pela conjunção entre a perfeição técnica no desenho e concretização das sortes e o máximo risco possível nelas assumido. Ou seja, Técnica e Ética, Verdade e Emoção. Se um ferro bem cravado (já se sabe, entrando de frente, abrindo o quarteio ao mínimo, de alto a baixo e ao estribo e vencendo o piton no remate) e saindo, ainda por cima, em terrenos de tanto compromisso não é um extraordinário momento de toureio, então não sei… E se a critica é que o cavaleiro se faz valer com demasiada frequência desses momentos, em toiros que não reúnem condições para os mesmos, com o único intuito de lograr o entusiasmo do público, só posso dizer que mil vezes isso a cem violinos, cinquenta “levadas”, e duzentas batidas que vão da Lezíria a Vila Franca, entre cavalos dançantes e outros que batem palmas! Haja decoro ou, pelo menos, o mínimo de imparcialidade!

 

João Pedro Oliveira, defendendo as cores do Grupo do Ribatejo fechou a noite e o capítulo das pegas, à segunda tentativa, após receber nas duas ocasiões de forma muito deficiente, adiantando o joelho, não contando com ajudas eficazes ao primeiro intento, que deixaram o toiro derrotar demasiado, já no meio do Grupo e acabando por se fechar sem problemas, ao segundo, com o toiro a entrar de “cadeirinha”.

 

Foi assim que saímos do Coliseu Figueirense com a sensação de termos assistido exactamente a uma CORRIDA DE TOIROS e não a uma “Corrida de Toureiros a fazerem coisas a Toiros”. Um curro de excelente apresentação, com um quinto animal extraordinariamente bravo, um terceiro igualmente muito bom e com os restantes, à excepção do “soft” último, a fazer aquilo que deles se espera, em menor ou maior grau: transmitir emoção, demonstrar a importância das suas investidas e, mais do que serem “obedientes” e “colaboradores” (quantas vezes vemos estes termos plasmados nessas revistas e sites taurinos?!?) colocarem questões a quem se lhes põe diante, cabendo a estes últimos saberem e poderem respondê-las… Da correcção das respostas a esse teste, cada um tirará as suas conclusões, mas parece-me que há muito a reflectir da parte de Rui Fernandes, João Ribeiro Telles e dos Amadores do Ribatejo e algo menos da parte de Francisco Palha, do qual continuamos a esperar mais “coerência”. O Grupo de Vila Franca passa a lição com distinção!

 

Apesar de tudo, quando são os Toiros quem triunfa, triunfa igualmente a Festa e, nem que fosse só por isso, esta Corrida deixa assim gratas recordações! Muitos parabéns à ganadaria “Manuel Veiga”!

Diogo Câncio

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