De quando a vida se endireita

Crónica

Nem é coisa do mundo. É a vida. A merda da vida é que é uma cabra injusta. Tantas vezes que a vida nos guarda um banco de pau, baixote, de três pés, para assistirmos ao seu espetáculo. A vida lá em cima do palco, vestida de sedas, bordada a ouro, com voz de tenor e nós num fundo da sala, a assistir ao que devíamos ser, de costas dobradas a lutar com o equilíbrio que ainda nos separa do chão.

Nem é que esteja tão mal sentado, mas sentimo-lo num segundo balcão, quando o vemos passar, discreto e de olhos nas algibeiras do pensamento, pelas ruas de uma terra que fez de si bandeira, ou não se chamasse José Júlio e fosse de Vila Franca. Ele que se habituou ao palco e ao canto de tenor com uma muleta nas mãos.

Vi-o tourear um par de toiros, já com 70 anos, poucas faculdades, mas pleno de toreria e capacidade técnica e, sem que o tenha visto ao vivo, os registos e relatos provam-no como um toureiro importante do seu tempo, do outro lado da fronteira e figura incontestável no nosso país, numa época em que as figuras do toureio desta terra de beira-mar ainda enriqueciam e ainda andavam nas capas dos jornais e nas bocas dos cantores.

Fosse pelo toureiro que foi e por aqui me ficava, mas José Júlio foi para mim muito mais que uns recortes de jornal. Foi meu Maestro, foi quem, a par do meu avô, mais me ensinou sobre toiros e foi quem me mostrou a grandeza do toureio. Não a grandeza do dinheiro, fama e saídas em ombros, mas a sua grandeza interior. A, creio eu, maior de todas.

Não tenho palavras para alguma vez agradecer este “mundo interior” do toureio que me fez descobrir. O toureio não se descreve. Nada há na vida acima de uma faena templada, sentida, abandonada. Eu, que não choro nunca, juro que uma vez senti uma gota de água num canto do olho, depois de meia dúzia de naturais largos que peguei a uma bezerra, nos meus começos.

– peço desculpa aos leitores, mas fugiu-me a escrita para o toureio.

É tão difícil descrever o toureio como escrever uma carta de amor. Eu aqui a batalhar com as letras a ver se me sai alguma frase que ponha no papel o que aquilo é na praça, e não há nada que sequer cheire a vaca. Tourear é ter o coração em cada músculo. É ter morte e vida em cada pedaço de nós. É um amor de verão que não acaba, a cada trincherilla. Tourear é tanto mais que não há palavras, não há metáforas, não há poesia que nos baste para o contar.

– ainda me saiu qualquer coisa, mas ainda longe de uma manhã orvalhada num tentadero.

Foi o Maestro José Júlio que me abriu a porta grande deste mundo interior. A mim e a tantos outros, que por si foram ensinados, com uma afición ao toureio e aos alunos que poucas vezes vi. Contam-se pelos dedos de uma mão os matadores portugueses no activo – serão mesmo cinco – e desta mão, quatro dedos foram por si ensinados: António João Ferreira, Nuno Casquinha e Manuel Dias Gomes deram consigo os primeiros muletazos e “Cuqui”, ainda que fugazmente, também bebeu dos seus ensinamentos. Se hoje ainda temos toureio a pé em Portugal, muito se deve à sua afición e paixão por ensinar.

Dizia eu no principio deste texto que a vida é uma cabra injusta. E é. Mas há momentos em que endireita as suas linhas tortas e os que devem sobem novamente ao palco para que todos os possam aplaudir. É o que vai acontecer na próxima feira de outubro em Vila Franca, onde o (meu) Maestro José Júlio vai ser homenageado como deve: numa praça. Vou lá estar para fazer justiça a tudo o que fez por mim, mesmo sem imaginar o tanto que foi. Talvez esse dia reponha alguma justiça na vida. Talvez este texto também o faça. Ou talvez não, que não são palavras que repõem a justiça em algo tão como grande como a vida ou que agradeçam algo tão grande como o toureio.

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