Foi-se embora o Maradona.
Aprendi a gostar dele com os anos, quase sem perceber porquê. Nunca o vi jogar ao vivo, não assisti às suas conquistas, não tenho costela argentina ou napolitana que me puxe ao saudosismo e sempre me falaram mais dos seus defeitos que das suas virtudes. Sempre mo mostraram como exemplo do que um atleta – e até um homem – não deve ser.
Durante mais de 20 anos, sem que importassem os seus golos ou malabarismos, era isto que Diego era, até o ver um dia a festejar um golo da bancada, perdidamente bêbedo – assim mesmo, com esse defeito que tantos desprezavam, como se nunca tivessem antes festejado um golo assim. Nesse dia percebi-o pela primeira vez. Mais do que um amontoado de defeitos, Maradona era alguém sem medo dos sentimentos, das emoções e da vida, e foi isso que aprendi a ver nele.
Maradona era uma estrela de rock. Era um desses casos raros em que o génio encontra esse lado temerário, quase suicida, e o carisma que eleva o génio a Deus. Maradona não era atlético, nem regrado ou trabalhador, mas não tinha medo. Em campo, como na vida, a sua coragem infinita levava-o por jogadas suicidas que terminavam em golos graças ao seu génio. Sem esse arrojo, sem esse enfrentamento às probabilidades, o génio ficaria muitas vezes guardado na lâmpada, e o golo a Inglaterra em 86 poderia ter-se ficado por um passe para Valdano a meio campo. Maradona nunca seria o que foi sem que o malabarista andasse de mãos dadas com o suicida extravagante – dentro e fora de campo.
Fazem falta os Maradonas ao mundo. Só os Maradonas, na sua ausência de imites, saltam do campo e nos invadem os sentimentos. Só os Maradonas enchem os estádios. Só os Maradonas enchem a vida.
Fazem falta Maradonas à festa. Falta-nos a extravagância. A entrega sem reservas às emoções e ao risco. Sobra hoje em profissionalismo o que falta em descaramento. Sobra em cavalos o que falta em excentricidade. Não há quem nos assombre, quem nos pasme. Não há tiradas improváveis ou posições incómodas. Não há pontadas de loucura ou assomo de originalidade.
A festa está feita uma música de elevador. Um bolo de arroz. A festa vai toda de fato azul escuro e bem penteada. A festa fica bem nas fotografias, mas foge muito das memórias. A festa precisa de um cabelo roxo e de uma mancha de vinho na camisa. Precisa de dançar em cima da mesa de jantar com um cigarro ao canto da boca.
Não é de toiros que hoje falo. É de artistas, de personagens. Porque um toureiro não se esgota na praça. Um artista nunca deve ter medo de se afirmar, de se mostrar como é, com alegrias, raivas e medos. Com todas as manias, todos os vícios, todos os defeitos que no fim de contas são o que o distinguem da vulgaridade em que navegamos nós, simples espectadores. Um toureiro, como homem das artes, deve fugir dos consensos. Deve ser um criador de sentimentos, desatar paixões e ódios, porque só assim se arrastam multidões.
Se tivesse sido toureiro Maradona não tinha sido figura. Tinha sido um mito. Um Belmonte, um Cordobés ou um Mestre Batista. Seria um desses cujas histórias esvoaçam entre a verdade e a mentira. Um desses de esgotar taquillas e criar brigas na bancada.
Hoje já não se briga na bancada. Que falta nos faz essa paixão… que falta nos faz um mito que a desperte. Que falta nos faz um Maradona…