Mentidero – Sortes

Crónica

E da ausência súbita de palavras surge, súbita e inevitável, essa palavra carregada da Santa Unção.

– Sorte.

Um “Sorte.” que não é a mesmo “sorte” que se atira ao batedor de um pênalti. Este não se agarra com olhos nos olhos. É um “Sorte.” que se escapa pela boca, como uma desculpa esfarrapada, quando a sorte de facto já não nos pertence. Quando tudo o que resta é a esperança de que os corvos andem com outras campas onde poisar.

Às vezes uma mão, emergindo das profundezas de um bolso, assenta-se no ombro sussurrando-lhe também, cheia de inseguranças na voz dos dedos.

– Sorte.

enquato a sorte ali, atrás dos ferrolhos, ainda na treva dos curros, e as incertezas e os medos já a trote pela praça fora, indiferentes aos areneiros e às suas pás de coveiro.

Mais acima, uma criança chora por um gelado. Que as queijadas não, a coca-cola talvez, mas um gelado… Se a sorte estiver consigo, o senhor que a tenta demover será seu avô, e na infinita generosidade dos avós, como nas suas gavetas da cozinha, há sempre lugar para mais um doce, que um dia não são dias e que mal há-de fazer?

E que mal hão-de fazer mais umas cervejas, ao grupo que nas galerias urra, assobia e ri, se amanhã é domingo e este sábado ainda nem de escuro se vestiu? Que mal há nas nódoas de vinho e tonturas, se tudo o que se tem são uns euros de mesada para gastar e a vida, tão longa, por viver? Que mal tem viverem ainda sem meias medidas, se afinal todos lhes invejam a sorte?

Até o trompetista da banda tenta esconder de si a admiração por aquela liberdade. Não é fácil viver encaixotado entre os pratos e o oboé e ter até o sopro encurralado por notas e tempos, tantas vezes suspensos pela batuta vaidosa do maestro, que sempre vira costas à obra que atrás de si se vai formando, graças à lealdade daqueles músicos-soldado. Há-de chegar a casa e ainda ter fôlego para desprender a arte das correntes da partitura e se lançar à sorte num dueto com Chet Baker, que irromperá selvagem pelas colunas da sala. Enquanto sonha, vai algemando um “Paquito Chocolatero”, que os areneiros parecem bailar, indiferentes aos dedos que, atrás da trincheira, cheios de insegurança na voz, vão orando a um ouvido

– Sorte,

até que o repicar da marcha fúnebre do cornetim e timbales, fecha a alma em si mesma naquele último minuto de vida até ao primeiro lance. Acabaram-se as mãos com palavras ocas, as vidas e murmúrios nas bancadas. Sobram as preces e anseios. Essas preces que se gemem e anseios que assombram quando se joga às cartas com a morte, na mais profunda solidão. 

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