Lisboa, 22 de agosto de 2024, a Monumental Praça de Toiros do Campo Pequeno recebeu aquela que foi a terceira corrida da sua temporada 2024, uma corrida que fica para a história da tauromaquia portuguesa e desta praça como a última corrida do Maestro Rui Salvador na primeira praça do país. O público preencheu cerca de três quartos fortes da lotação do tauródromo.
Talvez não seja a melhor pessoa para falar da carreira de Rui Salvador, pois não tive a oportunidade de a acompanhar na sua grande maioria, daí que quaisquer palavras que lhe possa endereçar sejam escassas perante tamanha maestria do cavaleiro de Tomar. Não assisti aos tempos áureos em que montando o Napoleão, a Ratona, o Importante e tantos outros foi apelidado de “Cavaleiro dos Ferros Impossíveis”, mas pude ao longo destes últimos anos comprovar que, embora sem as estrelas da quadra desses tempos, a garra e a vontade de triunfar de Rui Salvador permaneceram intocáveis. Rui Salvador é e será sempre um Senhor Toureiro daqueles que marcaram uma das gerações de ouro do toureio a cavalo a nível mundial. Lisboa esteve ontem completamente rendida a uma primeira figura do toureio e tributou-lhe sentidas ovações.
Passando ao espetáculo propriamente dito, foram ontem lidados 8 toiros da ganadaria Dr. António Silva, em ano de comemoração dos seus 80 anos. Relativamente à apresentação foi um curro de toiros imponente e sério, com caras impressionantes e um trapio inquestionável. Abriu praça o El Havano, marcado a fogo com o nº17. Foi um toiro nobre e com mobilidade, indo a mais com o decorrer da função. Foi a meu ver o de melhor comportamento dos oito. No final da sua lide, a ganadera Sofia Silva foi premiada com volta à arena. O segundo, Jaipur de nome, foi outro toiro com boas condições de lide, com mobilidade, embora faltando-lhe alguma transmissão. Em terceiro lugar foi lidado o Emigrante, toiro com algumas complicações, que pediu contas ao cavaleiro que teve por diante, tendo como melhor aspeto as suas investidas após os ferros. Fechou a primeira parte o Flecha, astado que teve mobilidade e imprimiu transmissão à função, apertando após a cravagem dos ferros. Os toiros da segunda parte não tiveram a mesma qualidade dos lidados até ao equador do festejo. Em quinto lugar saiu o Falso, um toiro “chato”, que não chegou a romper em pleno, algo andarilho, que pediu que se estivesse bem e ligado com ele. O Docinho ligado em sexto lugar não foi propriamente um bombom, teve casta e dificultou a tarefa a Rui Fernandes, mostrou-se reservado, embora quando persentia que podia colher o cavalo apertou, como provou o arreão fortíssimo após a cravagem do último ferro. O sétimo, Mariposa de nome, não foi fácil, não sendo beneficiado pelas batidas ao pitón contrário que lhe foram receitadas. Em último lugar foi lidado o Desencontro, cumpridor e com alguma casta.
Abriu praça o homenageado da noite que se despedia do Campo Pequeno. Rui Salvador iniciou a sua última noite nesta praça com uma lide que agarrou imediatamente o conclave. Esteve correto na cravagem da ferragem comprida, com destaque para o segundo ferro e partiu para uma série de curtos de boa nota, com destaque para a brega de muitíssimos quilates que chegou com muita força ao público, aproveitando de cabo a rabo o bom toiro Silva que lhe tocou em sorte. A brega de preparação do terceiro ferro, bem como o remate do mesmo, estão ao alcance apenas dos predestinados. Terminou com um extraordinário ferro em sorte de violino, rematado de forma soberba. Diante do segundo do seu lote, mais complicado que o anterior, o cavaleiro de Tomar teve de puxar dos galões e usar toda a sua maestria para dar lide a um toiro que não foi fácil. A missão foi cumprida e o que se viu na arena foi uma lição de bem tourear a cavalo, bregando com um temple impressionante e cravando a preceito. Mais uma vez, e a forte pedido do público, deixou o seu último ferro no Campo Pequeno, um violino de excelente nota. No final deu duas voltas ao ruedo, visivelmente emocionado, despedindo-se assim do Campo Pequeno de uma forma impressionante, arrepiando os presentes, deixando a casaca e o tricórnio na arena que há 40 anos o viu tornar-se cavaleiro de alternativa. No final, atravessou a arena aos ombros dos seus companheiros de cartel, num bonito sinal de reconhecimento. Obrigado Rui! Faltou apenas, a meu ver, que se abrisse a Porta Grande, por onde Rui Salvador devia ter saído em ombros, em nome de uma carreira brilhante e de uma noite de triunfo em Lisboa.
Rui Fernandes regressava ontem ao Campo Pequeno após alguns anos de ausência. Começou por dar vantagens ao primeiro do seu lote, para cravar dois bons ferros compridos. Realizou uma lide completa, cravando uma boa série de ferros e imprimindo uma brega de qualidade. Numa atuação a ir a mais, cravou um muito bom quinto curto, rematado com três cingidas piruetas que levantaram o público dos assentos. Diante do segundo do seu lote, teve de dar lide ao que foi o mais complicado da corrida. Teve uma atuação irregular. Iniciou de boa forma com um primeiro curto de excelente execução, extraordinariamente rematado. Consentiu depois um forte toque na montada e passou em falso, o que motivou alguns protestos por parte do público. Após o diretor de corrida ter concedido música num momento já tardio da atuação, deixou um último bom ferro curto, rematado de forma vibrante aguentando um forte arreão do toiro, emocionando os presentes.
Francisco Palha iniciou esta sua passagem por Lisboa com o melhor momento da sua noite, um primeiro comprido numa extraordinária sorte de gaiola. Nos curtos, desenvolveu uma atuação a mais, procurando ir ao encontro do que o oponente pedia. Esteve muito bem na ferragem curta, terminando com dois excelentes ferros, que o público reconheceu e aplaudiu merecidamente. Diante do segundo que lhe tocou em sorte, as coisas não correram da melhor forma. Iniciou com um bom ferro curto, com destaque para a preparação e o remate do mesmo. Daí em diante, e insistindo em pronunciadas batidas ao pitón contrário que resultaram nalgumas passagens em falso e num forte toque na montada, a lide não atingiu o nível da primeira. Trocou de montada e a lide atingiu os seus melhores momentos, embora sem que tenha rompido em triunfo. No final, não deu volta à arena.
Miguel Moura, o mais jovem cavaleiro em cartel, teve uma noite importante na primeira praça do país. Depois de uma temporada 2023 em que foi quiçá o triunfador da mesma, voltou esta noite a encontrar-se com a sua melhor versão e desenvolveu duas atuações que, embora não tenham chegado com a merecida força ao público em geral, chegaram certamente aos aficionados que reconheceram tudo o que de bem fez na arena. Abriu ambas as suas atuações com empolgantes sortes de gaiola, muito bem rematadas. Diante do primeiro do seu lote, desenvolveu uma excelente prestação, cravando bons ferros e bregando com qualidade. O quarto ferro improvisando por dentro foi de nota elevada e o remate foi dos bons. Terminou a atuação com um excelente ferro de palmo, igualmente bem rematado. Grande primeira lide do cavaleiro de Monforte! Diante do último da corrida tudo foi feito de forma perfeita, fazendo parecer fácil o difícil. Bons ferros e bons momentos de brega marcaram esta lide, terminada com um bom ferro curto e um bom palmo, a que se sucedeu outro a pedido do público, em que arriscou, pecando apenas pelo toque consentido na montada.
No capítulo das jaquetas de ramagens, viu-se uma interessante competição entre os Amadores de Évora e de Coruche.
Pela formação alentejana, abriu praça João Madeira que consumou com muito mérito na tentativa inicial. José Maria Passanha foi o responsável por pegar o terceiro da ordem. Não suportou o derrote inicial na primeira tentativa, consumando à segunda. João Cristóvão concretizou aquela que foi talvez a pega da noite ao primeiro intento, estando bem em todos os momentos da pega. Fechou a atuação dos Amadores de Évora o cabo do grupo José Maria Caeiro, numa boa pega ao primeiro intento.
Pelos Amadores de Coruche, Tiago Gonçalves pegou à primeira tentativa o segundo da ordem, contando com uma boa primeira ajuda de Fernando Ferreira. João Formigo viu o quarto da ordem arrancar pronto, metendo a cara em baixo e não permitindo ao forcado ficar na primeira tentativa. Concretizou à segunda uma boa pega. António Tomás foi protagonista de uma dura primeira tentativa, em que não conseguiu ficar. Concretizou à segunda tentativa uma grande pega. Fechou a noite o novo cabo João Prates, que apenas conseguiu concretizar à quarta com as ajudas carregadas.
Ao intervalo, as empresas Ovação e Palmas e Toiros com Arte homenagearam Rui Salvador, pelos seus 40 anos de alternativa no ano em que se despede das arenas, a Ganadaria Dr. António Silva, pelos 80 anos da sua fundação, e José Jorge Pereira, antigo forcado dos Amadores de Santarém, Montemor e Lisboa.
A corrida foi dirigida por Ricardo Dias, assessorado pelo médico-veterinário Dr. Jorge Moreira da Silva.