Com a seriedade por bandeira

No passado dia de 2 de Agosto, em noite de calor imenso, o Campo Pequeno viu ser ocupada cerca de um ¼ da sua lotação, para assistir a um cartel extremamente interessante, composto pelas Cavaleiras Sónia Matias e Ana Baptista, pelo Grupo de Forcados Amadores das Caldas da Rainha e pelos Matadores portugueses António João Ferreira e Nuno Casquinha, frente a toiros de São Torcato. Começando por estes que aqui aparecem em último mas que, na Festa, deviam ser sempre os primeiros, referir que o curro saiu com grande apresentação, embora nem sempre com bom tipo e que a maioria dos exemplares lidados apresentaram emoção e dificuldades, mais pela via do poder, da mansidão encastada e do génio, do que propriamente pela bravura. Em todo o caso, foi primeiramente graças aos toiros que todo o festejo decorreu sobre o signo da seriedade (salvo raras excepções) com o pouco público presente a saber calibrar e agradecer aos intervenientes tudo o que de bom se esforçaram por fazer frente aos difíceis oponentes.

É claro que quando de Arte falamos, e a Tauromaquia é uma Arte em grau superior, o simples esforço e a honestidade na produção da obra não são suficientes, é preciso que esta termine percebida como um conjunto absoluto, de verdade, harmonia e beleza, o que acabou por não acontecer na totalidade nesta noite. É, no entanto, da mais elementar justiça reconhecer que da combinação da dureza a das dificuldades dos toiros com a entrega e decisão dos intervenientes (especialmente no caso dos dois Matadores), resultou uma Corrida interessante e emocionante.

O festejo iniciou-se com uma lide a duo por parte das duas cavaleiras, que resultou caótica e absolutamente desinteressante, frente a um toiro montado e muito sério, quer em presença quer no áspero e encastado comportamento, que rapidamente se apoderou dos acontecimentos, destapando em maior grau as dificuldades de Sónia Matias e permitindo a Ana Batista, por comparação, sair um pouco por cima. A lide a duo exige um entrosamento e uma dinâmica que claramente não existiram e foi uma pena não termos podido ver o sério e duro exemplar de São Torcato a ser verdadeiramente toureado. Desta forma chegou praticamente inteiro á pega, antevendo-se as lógicas dificuldades, as quais tão pouco foram amenizadas pelo forcado Francisco Mascarenhas, que nunca mandou bem na investida, embora se tenha fechado com decisão e ganas à primeira tentativa, sendo derrotado já na zona do primeiro ajuda, por parte do qual parece ter faltado uma entrada mais oportuna, desfez a segunda, quando depois de “comer” muito terreno, apenas carregou duas vezes, de forma bastante precipitada, consumando de seguida, com o toiro a ser trocado de terrenos e retirado de tábuas, recuando pouco e dobrando-se muito ao receber a investida, mas contando com uma entrada humilhada e com um bom grupo de ajudas. O director, Pedro Reinhardt (que teve critérios flutuantes e bastante benévolos durante a Corrida) apenas concedeu, e muito bem, volta ao forcado, limitando-se o mesmo, igualmente bem, a agradecer no centro da arena.

Seguiu-se o primeiro toiro para a lide a pé, de muitos más “hechuras” para a função, em especial pela conformação dos pitons, demasiado abertos e pronunciadamente bisco, características que dificilmente auguram clareza e bom comportamento na trajectória das investidas. Isso sim, de imponente presença, que as nossas Figuras portuguesas não fazem “ascos” a tourear o que seja necessário para demonstrarem também ser alguém e os empresários com elas não se amedrontam, impondo e escolhendo os toiros que assim o entendem. António João Ferreira recebeu por verónicas limpas e suaves e Casquinha quitou por gaoneras (a competência em quites foi uma salutar constante durante toda noite), com o brusco toiro a acusar cada vez mais tendência à mansidão, doendo-se muito em bandarilhas e com várias arrancadas a destempo e “tarrascadas” violentas. Frente a tais condições esteve excelente “Tó-Jó”, iniciando a faena de muleta com o joelho no chão, procurando castigar e dominar as incertas investidas, ao mesmo tempo que não exigia trajectórias demasiado curvas, de forma a “confiar” o oponente. Infelizmente nem estes “cuidados” foram eficazes e o toiro demonstrou o seu génio durante toda a lide, só humilhando até metade dos muletazos, soltando e derrotando constantemente com muito mau estilo, nos remates. Destacou-se a primeira extraordinária série pela direita, onde toureou com verdade, assentamento e profundidade, mas a que o toiro respondeu, por sentir-se “podido”, tornando-se ainda mais violento. Nada mais houve a fazer, embora o Matador tudo tenha posto de sua parte. Faena de valor e importância, atendendo às circunstâncias.

O terceiro exemplar da noite, segundo para a lide apeada, acusou a mesma mansidão do anterior, embora com menos casta, o que o tornou menos emocionante. Bem apresentado, um pouco baixel, mas com cornamenta mais em tipo de investir, presenteou pela direita algumas investidas humilhadas e profundas, que foram muito bem aproveitadas por Nuno Casquinha. Mais “placeado” que “Tó-Jó” conseguiu dar um pouco mais de festa ao S. Torcato, mantendo sempre a planta assentada e não se atemorizando com as dificuldades apresentadas, mas fica-me a ideia que teria sido possível fazer melhor, em especial quando recordo a forma como, no último Colete Encarnado, dominou as investidas de um encastadíssimo Palha para deixar algumas séries de extraordinário toureio fundamental. Cobriu o tércio de bandarilhas com eficácia, sem poder fazer muito mais porque, à semelhança do irmão de camada, o S. Torcato começou a revelar toda a sua mansidão logo nesse momento. Na retina ficou-me um belíssimo remate com o capote, uma espécie de passe do desprezo, mas dado com a tela rosa, do qual confesso não saber o nome.

A Corrida voltou às lides a cavalo, tendo sido anunciado pelas instalações sonoras da Praça que seria Ana Batista a ocupar o lugar de Sónia Matias, por manifesta impossibilidade desta. A cavaleira de Salvaterra desenvolveu desta vez uma lide ao seu estilo, sóbrio e clássico, bregando e lidando o oponente com muita intenção, tendo-se destacado um extraordinário segundo ferro curto, viajando de praça a praça, com gosto e devagar, entrando de frente e aguentando o quarteio até ao máximo possível, deixando a bandarilha no momento exacto em que o toiro derrotou alto e violento cá em cima, o que talvez tenha provocado a ligeira má colocação da mesma. Em todo o caso, foi este o grande momento do festejo, no que à “Arte de Marialva” disse respeito. Para a pega saltou Lourenço Palha, que quase não alegrou a descomposta e bruta investida do “Torcato” e recuou ainda menos, aparentando igualmente ter adiantado as mãos, o que o levou a receber dois fortíssimos e rapidíssimos derrotes que o deixaram de imediato inconsciente, tendo recolhido à enfermaria. Para a dobra apresentou-se António Cunha, igualmente demasiado discreto e pouco convicto no primeiro cite, sofrendo um enorme primeiro derrote, mas apesar de tudo deixando a sensação de que a pega poderia ter sido consumada caso tivesse existido uma entrada mais a tempo por parte do primeiro ajuda. Volta a mandar pouco na sua segunda tentativa, mas recebe e fecha-se com muita vontade, contando desta vez com uma valente ajuda do “primeiras” a dar “o corpo ao manifestos” e com um extraordinário bloco dos restantes companheiros, que fecharam e anularam a violência do oponente com uma eficácia e velocidade notáveis. Um grande momento do Grupo das Caldas!

No quinto exemplar da noite regressámos ao toureio a pé, novamente por intermédio de “Tó-Jó”, que enfrentou um toiro bonito e bem apresentado, o qual recebeu por delicados “delantales”, replicados com um quite um pouco atabalhoado de Casquinha. Pareceu-me algo tenso na faena de muleta, o que se reflectiu em toques bruscos e a destempo, sobretudo no início pela direita, que acabaram por violentar um pouco o “Torcato”. Rematou com um bonito passe desmaiado, pelo lado esquerdo e aí descobriu-se o “piton” do oponente, que aproveitou para dar duas excelentes séries de naturais, abandonados e profundos, que fizeram soar alguns olés vibrantes. A faena voltou a decair, mas ainda sobreveio um último fogacho absolutamente extraordinário, num remate pela esquerda, que a todos maravilhou. No final foi concedida volta ao Matador, mas também ao Ganadero, bastante injustificada, quanto a mim, a segunda. O “S. Torcato” foi realmente mais nobre do que os até então saídos, com igual nível de emoção, mas esteve longe de ser um toiro verdadeiramente bravo, apresentando o mesmo comportamento de mansidão encastada. E desta à mansidão pura e simples, sem paliativos, não vai uma distância assim tão grande que justifique o premiar de animais que, repito-o, embora transmitindo emoção e ferocidade o fizeram essencialmente pela via do (mau) génio, da casta defensiva e da aspereza…

O último toiro destinado à lide a pé foi o que, de saída, quer por “hechuras” quer por comportamento, mais prometeu. Com um pescoço bastante mais comprido que os irmãos, respondeu inicialmente aos capotes de forma extremamente humilhada, embora rematasse depois por alto. A má llide aplicada pelos bandarilheiros e o quite, também por alto executado por António João Ferreira acabaram por não ajudar e o “Torcato” chegou à muleta, após um tércio de bandarilhas em que Casquinha teve de se aplicar, denotando muita brusquidão e soltando constantemente a cara. Da faena do Matador Vilafranquense, sobressaíram as ganas e a entrega, sendo inclusivamente colhido de forma aparatosa à conta de tanto se expor. No entanto, as formas triunfaram sobre o conteúdo e, face também às muito difíceis condições do oponente, artisticamente a faena não teve história.

Encerrou o festejo o mais bravo do curro enviado pelo ganadero Joaquim Alves, novamente lidado por Ana Batista. A questão é que os verdadeiramente bravos necessitam que as coisas lhes sejam muito bem feitas, caso contrário acabam também por se tornar duros e ásperos e foi o que vimos nesta actuação. Desde os compridos que os ferros foram colocados de forma constantemente atravessada e o toiro rapidamente aprendeu esse caminho, não mais se deixando enganar (os bravos, lá está, são muito, muito inteligentes), até acabar por alcançar a montada com um toque extremamente forte. Lide de coragem de entrega e em que tentou sempre sobrepor-se ao toiro, mas em que, infelizmente, se viu desbordada, ao contrário do que por exemplo aconteceu na passada Feira de Outubro, em Vila Franca, onde deu uma autêntica lição, face a um poderoso Grave. Há dias e dias e um Artista, está claro, tão pouco é um robot. Outra será…

Para a última pega, decidiu o Grupo das Caldas tentar uma cernelha, por intermédio de Duarte Palha e José Maria Abreu, tendo o primeiro estado em plano imponente, pela forma como, vendo que o tempo passava, entrou duas vezes ao toiro sem cabrestos (os quais nunca se chegaram perto, também por alguma falta de empenho de um dos campinos presentes), acabando por consumar uma cernelha emocionante, mas onde pecou pelo facto de se agarrar ostensivamente às bandarilhas.

Terminou assim uma noite em que, embora sem a existência de triunfos rotundos, vimos tourear e vimos, sobretudo, vontade e abnegação na ultrapassagem das dificuldades apresentadas por um curro de toiros que a todo o momento “pediu os papéis” a quem se lhe pôs diante. E convém lembrar que, especialmente no caso dos Matadores actuantes, esses papéis não são em demasiada quantidade, com um a ter de rumar ao Perú, numa vida difícil e de sacrifício, para continuar a poder exercer a profissão que o enche por dentro e o outro com contadíssimas oportunidades nos últimos anos para mostrar a seriedade, a verticalidade e o assentamento do seu conceito. Deverão estar contentes os dois pois, mais uma vez, não defraudaram, dando nova lição de entrega e hombridade, frente a Toiros que tantos “outros” nem em Espanha, picados e bem picados, quereriam ver.

Uma Corrida de Toiros, com a seriedade por bandeira… É o mínimo que podemos e devemos exigir.

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