As “sortes” dependem da sorte!

Crónica

A Tauromaquia é um mundo repleto de superstições, crença, Fé!

Este fenómeno não acontece por acaso, surge porque o espetáculo tauromáquico é um dos últimos, senão o ultimo, dos espetáculos de expressão cultural e artística onde a tragédia e a glória andam de mão dada e em que realmente se joga a vida e a morte tanto do toiro como do Toureiro. Prova disso foi a trágica colhida que vitimou Ivan Fandiño, que acreditamos ter passado ao Éden, permanecendo vivo nas nossas memórias.

Mas o propósito deste artigo não é abordar a temática da importância que a Fé tem para os intervenientes da Festa e menos ainda as superstições, algumas comuns à maioria, outras singulares e próprias de cada artista.

Surge esta reflexão na sequência do último texto da autoria do João Braga, que descreveu a sua interpretação das “sortes” frontais. Sendo estas indubitavelmente as mais valorizadas e apreciadas pela dificuldade de execução, necessidade de grande domínio dos terrenos do toiro e da sua investida, exigência na condução dos cavalos, inquestionável valor e brilhantismo.

Reside, no toureio frontal e ligado, a fórmula para um toureiro alcançar triunfos importantes e atingir o patamar de figura do toureio. Com a acesa competição e elevado nível dos artistas mais conceituados da atualidade, quem não toureie de frente dificilmente consegue atingir lugares cimeiros no “escalafon” e merecer a admiração dos aficionados.

Dizia uma “seguidilla”:

“Caballo de pura sangre

y fama de buena ley;

toros de buena divisa,

y soy más rico que el rey”

Feliz ou infelizmente, os toiros saem todos com comportamento diferente. O esforço dos “ganaderos”, que optam pelo melhoramento dentro de uma “encaste” “em puro” ou recorrendo a várias procedências tem, na maioria dos casos, tem dado frutos.

Nessa medida uma “buena divisa” garante mais homogeneidade de comportamento e aumenta a probabilidade dos toiros saírem bravos, proporcionando assim aos cavaleiros matéria-prima de maior qualidade para explanarem o seu conceito de toureio. Não obstante, por vezes um toiro de fina estampa e de reata “aristocrática” revela-se mau, ou manso perdido, ou fechado em tabuas, ou sem acometer aos cites esperando

encampanado e tapando a saída, ou adiantando-se, ou não humilhando e derrotando por alto no “embroque”, ou uma mescla de varias destas características indesejáveis.

Neste mano-a-mano com o João Braga, ele teve sorte, saiu-lhe um toiro bravo, “encastado”, com “fijeza”, mobilidade e nobreza que lhe permitiu fazer centrar-se nas “sortes” frontais. Mas, como disse no título, as “sortes” desenhadas durante a lide dependem da sorte, ou da falta dela no momento do sorteio das rezes!

Tocou-me a mim “bailar com a mais feia”, saiu-me o tal manso, permanentemente refugiado nas tábuas, reservado, a adiantar-se e a tapar-me a saída. Talvez a sua quadra de “caballos pura sangre” lhe permitam também uma maior exposição, ao invés dos meus que não me dão margem para pisar terrenos de tanto compromisso.

As condições são propícias para que ele seja “mas rico que el rey”, alcançando um triunfo memorável, mas eu também tenho argumentos, a minha faena será uma guerra, tentarei sacar o máximo que o indesejável manso me permitir na esperança que os verdadeiros aficionados reconheçam o meu brio profissional e noções de lide e o intenso labor que estas condições impõem.

Estou certo que sim! Não serei o triunfador, mas deixarei uma imagem boa e respeitável. Afinal, cada “sorte” tem o seu valor, conforme o toiro, os terrenos onde se encontra, a colocação do cavalo relativamente à posição do toiro e a velocidade com que é executada.

Ainda haverá quem valorize uma faena menos harmoniosa e brilhante, mas de grande entrega.

Passarei portanto a descrever as que considero serem as principais “sortes”, sendo algumas de recurso que, se executam quando o toiro não dá outras opções.

“Sorte” à tira:

Podendo durante o cite encontrar-se cavalo e toiro rigorosamente de frente um com o outro, preferencialmente dá-se primazia de investida ao toiro, iniciando o cavaleiro de seguida a sua viagem saindo imediatamente para a esquerda numa linha reta e com velocidade suficiente para ganhar a cara sem se dobrar na reunião.

A tira pode ser efetuada na perpendicular, que evolui como o nome indica, ou com trajetórias de cavalo e toiro oblíquas, tendo assim mais valor.

Muitas vezes subvalorizada, a execução desta “sorte” implica que o cavalo tenha boa capacidade atlética e que tenha muita moral, pois a ausência de engano provocando desvio de direção e desequilíbrio do toiro, a duração da viagem e velocidade da investida nesse período propiciam a que o cavalo desconfie.

“Sorte” a sesgo

A designação desta “sorte” assenta na posição do toiro e do cavalo, ambos encostados às tabuas e ensesgados em relação à arena.

São muito comuns e uteis quando o oponente do ginete se defende, refugiado em tábuas. Nesse caso, o cavaleiro posiciona a montada junto a trincheira e cita, tendo normalmente de tomar a iniciativa de iniciar a viagem por falta de prontidão do toiro, que ao sentir que lhe pisam os terrenos, se arranca para os terrenos de fora permitindo no “embroque” a cravagem da bandarilha.

Atualmente esta “sorte” é muito apreciada, pois sucede-se a um momento da brega em que o cavaleiro executa o galope de “costado”, tentando trazer o toiro numa investida “templada” ao longo das tábuas com o cavalo a ladear a galope até que se pare em terrenos de dentro. Nesse momento, com a intenção de manter ligação na faena, o cavaleiro aproveita para se colocar de frente com o toiro e cravar o ferro, que pode ser à tira, de frente a quarteio ou com batida ao piton contrario mas, evidentemente, em posição ensesgada com a arena, não subtraindo essa condição valor ao ferro, desde que colocado ao estribo e cravado “de alto a baixo” com boa colocação.

“Sorte” em terrenos cambiados

Esta opção consiste em citar para provocar a investida, mas passar pela esquerda tentando que o toiro persiga o cavalo, o que acontecendo permite que, numa volta brusca se aproveite a mobilidade do hastado para deixar o ferro, normalmente à garupa.

“Sorte” galeando

Esta acaba por ser uma variante mais vistosa da “sorte” em terrenos cambiados, pois inicia-se com uma passagem pela esquerda tentando que o toiro persiga a garupa do cavalo galeando, de seguida procura-se ganhar terreno que permita voltar-se repentinamente e cravar a bandarilha.

“Sorte” à garupa

Trata-se de uma “sorte” idêntica à que comumente se vê executar por campinos em picarias, ou seja, o cavalo é acossado pelo toiro e o cavaleiro procede a um ajuste de velocidade da montada relativamente à do inimigo que permita cravar a bandarilha à garupa. Há certamente quem não lhe reconheça grandes méritos, mas onde está o toiro, está o perigo e devemos apreciar a noção de “temple” do ginete ao trazer o toiro toureado atras da sua montada, controlando a velocidade desta em função da velocidade do toiro.

Compreende-se que os mais conservadores assumam uma atitude crítica relativamente a esta prática, mas ela deve ser apenas executada como recurso e requere um bom domínio do cavalo e da investida do toiro para se consumar.

“Sorte” a toiro corrido

Quem já tenha visto atuações de recortadores terá presente que determinados recortes são feitos a toiro corrido. Nesses espetáculos, um recortador provoca a investida e corre a direito com o capote a uma mão, sendo essa mesma investida aproveitada por outro recortador que se desloca no sentido do toiro para proceder, por exemplo, a um salto.

O mesmo pode ser feito por um bandarilheiro, recorrendo então o cavaleiro a essa arrancada para cravar o ferro.

É simultaneamente pouco usada pelos cavaleiros e apreciada pelo público aficionado em virtude de não haver qualquer mando na investida por parte do toureiro.

“Sorte” à meia volta

Neste caso o cavaleiro galopando em redondo “ataca” a garupa do toiro aproximando-se e chamando-o por forma a surpreende-lo, o que o impele a investir. Tendo o toiro de se dobrar e rodar sobre si mesmo, não tem capacidade para imprimir força e atingir velocidade, recebendo nesse momento o ferro.

Trata-se de uma prática de mérito escasso que deve ser reservada para toiros que se adiantem muito, de tal forma que não permitam vencer o piton.

Foi descrita por António Luís Lopes como “bastante antiga e usada como recurso, pois é a mais fácil de todas e a que encerra menos risco e mais vantagens para o cavaleiro: pode executar-se com todos os toiros e com as maiores probabilidades de êxito; é a “sorte” de defesa por excelência”.

Termino esta “corrida” satisfeito por ver o João Braga sair em ambiente triunfal pela porta grande, e sobretudo com a sensação de dever cumprido, tendo dado o meu melhor ao tentar sacar o máximo possível do manso que me tocou e demonstrado claramente que saí à praça disposto a tourear com pundonor e brio.

O desfecho foi prova inequívoca de que este mano-a-mano foi um cartel rematado, passível de futuras contendas semelhantes.

Tenho Fé que numa próxima oportunidade se inverta o cenário e me toque em sorte um lote de mais qualidade, que me permita executar “sortes” frontais, repletas de verdade que mudem a minha sorte como toureiro, que não sou!

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