Tauromaquia: arte ou barbárie?

Leia o artigo de opinião de Lourenço Pereira Coutinho no Jornal Expresso.

omeço por fazer uma confissão politicamente incorreta: sou aficionado. Não cresci num ambiente tauromáquico, nem tive ninguém próximo que me estimulasse o gosto pela matéria. Em miúdo, ficava fascinado por ver os programas e as corridas de touros na televisão, e estava sempre a pedir aos meus pais para ir às praças, para ver ao vivo e a cores o que só conhecia a preto e branco. Mais tarde, a partir da adolescência, comecei a juntar dinheiro para ir às principais feiras, conheci outros aficionados, estudei os fundamentos da tauromaquia, vivi de perto a sua realidade.

A minha adesão inicial à tauromaquia não se fez, pois, pelo argumento da tradição, muito menos pelo da razão, mas sim pela via da emoção. A mesma emoção, admito que incompreensível para muitos, que tocou e toca gente comum como eu e, também, espíritos superiores como Goya, Hemingway ou Picasso. Mais do que erudita ou popular, a tauromaquia é transversal, teve adeptos entre camponeses e marqueses, e hoje é seguida por gente de esquerda e de direita, ricos e pobres. E esta é uma das suas grandes riquezas: a de conseguir, nem que seja por momentos, a unanimidade de uma vasta diversidade.

A tauromaquia não é, claro, uma atividade asséptica. Implica emoção, risco e sofrimento. Mas está longe de ser a barbárie que os antitaurinos procuram fazer crer. Há quase 40 anos que acompanho o fenómeno tauromáquico. Estou convicto que ninguém vai para uma praça a esfregar as mãos, e a pensar em assistir a uma tarde de tortura. Os aficionados focam-se no comportamento do touro, e na forma com o toureiro, a pé ou a cavalo, procura encontrar soluções para contornar os desafios colocados por um animal poderoso, de forma a fazer parecer fácil algo que é tremendamente difícil. Para mim, é neste ponto que reside parte da emoção: a capacidade humana de suspender os seus medos e superá-los com estética e valentia.

Esta narrativa não pretende, porém, ignorar os argumentos dos que contestam a preservação dos espetáculos tauromáquicos. Aceito que muitos, sobretudo os que nunca tiveram contacto com a realidade tauromáquica, considerem o que acima escrevi um absurdo. A diferença entre um aficionado e um antitaurino, é que o primeiro encontra arte na tauromaquia, enquanto o segundo só vê barbárie. São dois pontos de vista igualmente respeitáveis, mas seria importante que fossem vincados com verdadeiro conhecimento de causa.

Objetivamente, o touro é posto à prova na arena. Mas este estado não pode ser interpretado de uma perspetiva antropocêntrica. Aliás, numa visão estritamente utilitária e asséptica, não faz hoje sentido qualquer relação entre o ser humano e os animais fora de um enquadramento de estrita liberdade: os cavalos já não são necessários enquanto meio de trabalho e transporte, e a companhia de animais domésticos não passa de capricho dos humanos. Também, sob um ponto de vista unicamente racional, não é lógico optar por carne mirandesa quando outras têm características nutricionais semelhantes. Nesta abordagem, tanto a equitação, quanto a escolha da carne, são prazeres humanos que implicam a exploração imoral de animais. Felizmente, a vida ainda não se pauta por critérios estritamente utilitários ou racionais, e a equitação continua a existir, assim como a possibilidade de optarmos por uns secretos de porco ibérico, ou por uma posta mirandesa. Como em tudo, é preciso bom senso e equilíbrio. Rejeitar toda a espécie de maus tratos ou violência gratuita sobre animais, mas saber separar o trigo do joio, e não confundir realidades.

Esta semana, Inês Sousa Real, líder parlamentar do PAN participou num debate com Miguel Sousa Tavares a propósito dos projetos de lei que hoje vão a debate no parlamento, e que pretendem por fim ao financiamento público das atividades tauromáquicas. Sobre estes, duas notas. A primeira, é sobre a quantidade dos projetos, baseados genericamente nas mesmas

considerações e propondo a mesma medida. Dá ideia que PEV, BE, PAN e a deputada não inscrita Cristina Rodrigues, não estiveram disponíveis para, simplesmente, considerar uma única iniciativa, e quiseram antes marcar pontos políticos com a matéria. A segunda, é a nula presença autárquica destes partidos. Descontando o PEV, que não se percebe o que é, mas que aproveita estes temas para fazer prova de vida, tanto BE quanto PAN são partidos urbanos, que nada conhecem para além das áreas metropolitanas das grandes cidades. Só assim se pode propor uma lei que impossibilita as autarquias de apoiarem festas e manifestações que fazem parte do património cultural e da sociabilidade de muitas localidades.

Não é, pois, de estranhar que, no referido debate, a líder parlamentar do PAN tenha referido uma sondagem que indica que a maioria dos lisboetas são contra a tauromaquia. Isto diz muito. Inês Sousa Real suporta o seu argumento com a opinião dos lisboetas. E que tal preocupar-se com a opinião de alentejanos, ribatejanos ou terceirenses? As decisões sobre estas matérias não devem basear-se na opinião de um mundo urbano politicamente correto que não conhece, ou não quer conhecer, o Portugal que se estende para além das suas muralhas.

Durante o debate, Inês Sousa Real defendeu que, caso as atividades tauromáquicas acabassem, os touros bravos poderiam continuar a existir, e ser visitados em “safaris” (!). Seria de facto boa ideia que todos os que se opõem à tauromaquia fizessem um “safari” pelo mundo rural. Ajudava-os a perceberem melhor as suas particularidades e a sua cultura, e o muito que distingue a tauromaquia da simples barbárie, o que é impossível de explicar em poucos parágrafos. Porque este tema não pode ser discutido nem percebido à luz de abstrações racionalistas e politicamente corretas, só depois de se conhecer a realidade tauromáquica que está para além da praça de touros é que se poderá decidir, com conhecimento de causa, se esta é de facto um fenómeno cultural, ou então um simples ato de tortura.

Texto: Lourenço Pereira Coutinho/Jornal Expresso.

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