Esse “OLÉ” que ainda ecoa…

Foi no quinto da noite… O ambiente já fervia e, de repente, o Génio fez uma passagem ao toiro, que carregava a favor de curros, que desatou o “OLÉ” mais profundo, alto e sentido que jamais ouvi numa Praça de Toiros! Exagero? É sempre ingrato o papel do cronista, tentando plasmar no papel as emoções e as imagens vividas durante uma Corrida, perante a natural desconfiança de quem não a presenciou ao vivo… E ainda mais ingrato é quando sabemos antecipadamente que nada do que possamos dizer vai descrever ou acompanhar minimamente toda a beleza e magnificência daquilo que nos foi dado a assistir, mas sobretudo sentir… Que coisa Maestro, nem todos conseguimos crescer, sonhar e improvisar como o fez nesta Histórica Terça Nocturna da “Palha Blanco”, deixa-me aqui em maus lençóis… Vamos tentar…

Comecemos por afirmar uma coisa: há um só Toureio, com as suas infinitas variações e estilos, mas sempre alicerçado numas bases, formas, conteúdos e, acima de tudo, numa Ética, que o tornam na pedra basilar a partir da qual deve ser lançada toda e qualquer tauromaquia individual. Na “Arte de Marialva”, esse Toureio e essa Ética têm como princípios fundadores a concessão máxima de vantagens aos toiros, encarando-os a direito, deixando-os chegar até ao limite do (im)possível pela frente do cavalo, para os redondear, vencendo a investida, cravar de alto abaixo e ao estribo e sair, rodando o píton. E porquê? Porque é desta forma que o homem, servido da sua inteligência e do seu valor, mais arrisca a vida e a colhida frente à força e ao ímpeto do animal. A máximo risco, máxima Pureza e máxima Verdade. Assim de simples. E assim de simples também, afirmemos sem rodeios que António Ribeiro Telles é, hoje em dia e desde há muito tempo, o expoente máximo desse verdadeiro Toureio, um Clássico na mais grandiosa acepção da palavra: aquele que praticando a sua Arte com os cânones “antigos” é, por isso mesmo e simultaneamente, um toureiro intemporal e verdadeiramente moderno. No passado dia 9 de Outubro, no mais grandioso e adequado cenário para o acto, a exigente e belíssima “Palha Blanco”, o Mestre explanou mais uma eloquente, definitiva e espectacular lição de tudo o que atrás foi dito. Em primeiro lugar: Muito Obrigado!!!

Enfrentou três adversários de características muito diferentes (colaborador, mas desinteressado o Prudêncio; manso, áspero e difícil, o Palha e bravo, com alegria e tranco murubeño o Guiomar Cortes Moura) e, graças a essa disparidade de comportamentos, brindou-nos com um compêndio da boa brega e de inteligência toureira, “encontrando toiro” em todos os terrenos e logrando sempre ultrapassar “crenças” e dificuldades. O Toureio à Portuguesa, intencional na brega, senhorial no cite e na equitação, com toda a verdade na cravagem! No primeiro, aproveitou as espectaculares investidas iniciais, de praça a praça, para deixar dois magníficos compridos, empenhando-se depois, face à progressiva “perda de gás” e de interesse do Prudêncio, numa brega vistosa e ajustadíssima, logrando a renitente colaboração do oponente. Destaque para o segundo e terceiro curtos, antecedidos desses extraordinários momentos de lide e para o quinto, partindo da porta dos curros para o meio, pleno de valor, apesar de sofrer um ligeiro toque. Uma actuação sólida e em plano de Maestro, que abriu o livro para o que havia de chegar…

Frente ao duro Palha brilhou novamente a grande altura a intencionalidade e maestria a “mexer” no adversário, que se doía após os ferros, cabeceando constantemente e adiantando-se nas reuniões, o que raramente permitiu demasiado ajuste. Ainda assim, ficaram na retina dois curtos no final da lide (quando já nem à excelente brega o toiro obedecia) cravados do meio para os curros, quase junto à porta, com grande coração e decisão. Atacado que foi nesses terrenos, o pupilo da Adema foi ainda convencido a uma derradeira perseguição e, quando deu por ele, tinha novamente sido deixado pelo Mestre exactamente no centro da arena, onde rematou a actuação com um brilhante ferro.

No quinto da ordem, último da sua conta pessoal, António atingiu as quotas máximas de perfeição! O primeiro comprido, cravado de praça a praça, “à gaiola” foi o prelúdio de uma verdadeira “faena” sempre em crescendo, que a todos nos maravilhou e arrepiou! Na brega, as batidas de garupa, suaves e cadenciosas, verdadeiros muletazos, ante a nobre e brava investida do Cortes Moura, a inspiração das passagens pela frente, uma sem as mãos nas rédeas e “a tal”, que despertou aquele olé estremecedor, encarando-se com o toiro como um Matador a dar o peito à investida. O adversário arrancando-se alegre e templado de todos os terrenos e o Maestro lidando-o a gosto, pleno de perfume e “toreria”… Um compêndio, uma sinfonia!!! Terceiro e quarto curtos, no mesmíssimo centro da arena, no mesmíssimo centro do Mundo, um universo habitado pelas três mil almas que, em conjunto, sonharam e viveram com António a história de uma lide perfeita, principio meio e fim, alfa e ómega do orgulho de bem tourear à portuguesa… Emocionante, colossal!!! Foi a sua uma noite para a História, verdadeira enciclopédia de Toureio e de Arte, que jamais será esquecida por quem teve a sorte de a ver e viver e que esperamos tenha ficado gravada em vídeo, para servir de manual e de material de estudo às gerações vindouras… e às actuais! Que grande é Maestro!

Diego Ventura não teve, certamente, a passagem desejada pela arena da “Palha Blanco”, sendo que lhe calharam em sorte três oponentes de características semelhantes aos do seu competidor.

O primeiro, de Prudêncio, áspero, bruto e difícil, a acusar um aparente defeito de visão, fugiu literalmente a barbear tábuas após o segundo ferro curto, um quiebro ajustadíssimo que foi o melhor da primera actuação do ginete Luso-Espanhol. O comportamento do toiro não mais se alterou e Ventura empenhou-se em tentar colocar as bandarilhas com pronunciadíssimas batidas e com o toiro sem praticamente arrancar dos terrenos de dentro, o que lhe valeu, inclusivamente, uma forte colhida, que só não arrastou cavalo e cavaleiro para o chão por falta de força do hastado. Junte-se a isso a excessiva intervenção dos peões de brega e a quase ausência de lide por parte do cavaleiro e o resultado foi o silêncio do conclave, com alguns audíveis protestos pelo meio. Terminou a lide sem música e sem concessão de volta.

O quarto da ordem, segundo para o rejoneador, foi um Palha anovilhado, gordo e rabicho, de escassa apresentação, mas que compensou largamente o fraco aspecto físico com uma grande dose de bravura, arrancando-se pronto, de todos os terrenos e a perseguir com duração. Frente a este material de excelência, soube a muito pouco uma lide onde nunca imprimiu excessiva verdade e emoção às bandarilhas curtas e onde se tentou luzir nas bregas a ladear, sofrendo constantes toques. Tentou rematar com dois quiebros ao violino, sofrendo um fortíssimo embate no primeiro e deixando o ferro colocado de forma extremamente deficiente e descaída no segundo. Mais uma vez, a constante intervenção dos peões, que se prodigaram em verdadeiras faenas de capote, quer com o cavaleiro dentro da arena, quer nas trocas, juntando-se à muito fraca prestação, face às qualidades do Palha, fizeram que terminasse a actuação sob um coro de assobios, não se entendo a concessão de música e de volta, a qual acabou por não dar, face à veemência dos protestos vindos das bancadas. Considerando a bravura do toiro e as qualidades que todos reconhecemos (ou deveríamos reconhecer) a esta enorme Figura do Toureio, actuação para esquecer.

Em sexto e último lugar, saiu finalmente o único exemplar com que se sentiu cómodo, parecendo dar razão aos seus detractores, os quais referem amiúde que só com as “bobaliconas” investidas do encaste murube anda verdadeiramente a gosto (opinião que não comparto, atenção.). O Guiomar Cortes Moura foi o cúmulo da docilidade, da nobreza e da suavidade, permitindo-lhe diversos enfeites durante a brega e a cravagem de quase todas as bandarilhas curtas em quiebros, junto às tábuas, fazendo recuar a montada e aguardando a tranquila investida do adversário. Para remate, apresentou o já famoso “Dollar”, colocando dois pares de bandarilhas sem cabeçada, apesar das “negaças” do cavalo, por mais do que uma vez. Quis repetir dose, mas o Director, Pedro Reinhardt, com bom critério, não o consentiu. Trocou ainda de montada uma última vez, para deixar um palmo e dar muitas voltas ao desorientado “Guiomar” e, mais uma vez, fez de tudo para puxar o tradicional pedido de “mais um” por parte do respeitável, que se tinha aquecido com o “Dollar”, novamente muito bem negado pelo Director, ante a ira de uns e o entusiasta apoio de outros… Vila Franca é Vila Franca…

Esperava-se mais, muito mais e na memória pairava-me a enorme actuação que teve neste redondel no Festival de Homenagem a José Palha, lamentando-se que, por umas razões ou outras, não tenha sido capaz de alcançar nesta noite a real dimensão daquilo que é capaz de fazer, muito para além dos simples adornos associados normalmente ao rejoneio, mas sim toureando com a verdade e a garra que também sabe imprimir às suas actuações.

Já falámos do extraordinário e do decepcionante, deixamos para o fim aqueles que, a cada Terça-Feira Nocturna da castiça “Palha Blanco”, são um dos principais motivos de romaria à Praça, com a sua tradicional encerrona, ponto fulcral e muitas vezes final de cada época do fabuloso Grupo de Forcados Amadores de Vila Franca de Xira.

Em noite de despedida, enquanto Cabo e elemento no activo, abriu Praça um símbolo da sua Geração: Ricardo Castelo, Forcado de técnica apuradíssima e de enorme Senhorio, sempre sem espaventos na cara dos toiros, não obstante o seu enorme poder e raça, tantas vezes tapados por essa extraordinária serenidade face aos mais difíceis e duros dos adversários. A sua pega foi, mais uma vez, um perfeito exemplo de todos estes atributos, desde o cite tranquilo e pausado, paladeando até ao último instante esta última intervenção “oficial”, mas a alegrar e a fazer soar a voz com galhardia, ganhando o terreno justo para despertar a investida e logo se trancar com toda a alma, face à reunião descomposta pela entrada atravessada do Prudêncio, brilhantemente ajudado por esse outro nome incontornável da forcadagem nacional, Emanuel Matos que, a par dos retirados Bruno Tavares, Tiago Oliveira “Salsa” e João Bento “Petróleo”, não quis deixar de dar este derradeiro contributo aquele que foi o seu Cabo durante nove épocas. No final, a sempre emocionante volta, de Jaqueta ao ombro, recebendo o enorme carinho dos seus companheiros e do público, recordando-nos sempre por quão pouco jogam a vida estes autênticas Figuras do Toureio: uma salva de palmas, um sorriso e umas flores vindas da bancada, um abraço sentido antes e após a Corrida, mas, sobretudo, a sensação de Honra e do Dever cumprido. Muito obrigado por tudo Ricardo!

Seguiu-se Vasco Pereira, o novo Cabo, brindando ao Ricardo, à sua Mãe e, como não, ao céu, onde orgulhosamente o seu Pai assistia por certo à primeira intervenção do filho enquanto líder do Grupo que tanto amou e por quem tanto deu. Foi difícil esta segunda pega da noite, com o toiro a arrancar que nem uma seta na primeira tentativa, cheio de velocidade e más intenções, com a reunião a dar-se de lado, saindo o Vasco de imediato despejado. Ao segundo intento, com a clareza de ideias que é apanágio dos eleitos, logrou mandar por completo, quer no momento da arrancada, quer no caminho da investida (nada o fazia prever, face à forma como havia saído lançado, à primeira) mas o Prudêncio aplicou dois terríveis derrotes seguidos, um para cima e outro, imediatamente para baixo que, mais uma vez, impossibilitaram o sucesso. Voltou à cara com a mesma decisão mas, desta feita, fruto das ânsias em ajudar e de alguma precipitação, o Grupo esteve demasiado compacto, não permitindo que o Vasco recuasse, recebendo em cheio todo o impacto da investida, sendo novamente e de imediato lançado para fora. Pega consumada à quarta tentativa, com uma extraordinária primeira-ajuda do irmão, José Francisco, realizando ambos toda a viagem sozinhos, desde a porta de cavalos até à porta dos curros, uma vez que o toiro desviou a trajectória, não permitindo a imediata intervenção do restante Grupo. Pega rija e de imenso valor, a qual teria sido merecedora de volta. Na sua barreira, estou convicto que o “Mané” aplaudiu com todas as forças…

Para o terceiro da noite foi escalado o Francisco Faria. Este era o Palha que calhou em sorte a António Ribeiro Telles e que durante toda a lide nada de bom tinha anunciado, manso, orientado, sempre a doer-se e a arrancar “a tarrascadas”, sempre a medir o que tinha pela frente. Pedia um Forcado e um Grupo na sua máxima concentração e no seu pico de qualidade, exigia a perfeição… E teve-a! Determinante a forma como o Francisco não o deixou “perder-se” a barbear tábuas, citando-o com a voz e com um ligeiro carregar, mas evitando ao mesmo tempo que arrancasse de imediato e sem estar devidamente “metido” com o Forcado. O resto foi puro Toureio, enchendo a cara ao “bruto” medindo os tempos do cite e do recuar com precisão de relojeiro, retirando toda a maldade à investida e recebendo o duro impacto com absoluta perfeição. Cá atrás, irrepreensível actuação dos ajudas, que foram sempre fazendo “sentir o seu peso” sobre o manso, jamais lhe consentindo veleidades, com destaque para a segunda de João Maria Santos. Um extraordinário momento do Grupo de Vila Franca!

David Moreira demonstrou mais uma vez o material de que é feito quando, ao não estar perfeito no cite (carregou passos enquanto o toiro estava a cabecear, fazendo com que este se arrancasse de forma extemporânea) e, a meu ver, não recuando o suficiente, recebeu o primeiro brutal derrote, agarrando-se de braços, com toda a garra e vontade, até à chegada dos companheiros, novamente determinantes no fecho em bloco da pega. Um Forcado que já é um caso sério, sempre capaz de compensar com uma enorme Alma os momentos de menor correcção técnica.

E, se de Alma de Forcado falamos, na História deste Grupo de Vila Franca e das Ramagens Nacionais, um nome surge cimeiro, verdadeiro espelho do crer, do querer, do espírito de sacrifico e de abnegação, em resumo, da Vontade, da Entrega e do Valor, que associamos à Figura do Forcado Amador… Márcio Francisco! Nesta memorável Terça-Feira Nocturna realizou igualmente a sua última pega oficial, com a marca da casa: depois de uma primeira tentativa em que ficou extremamente combalido devido a uma pisadela na cabeça, arranjou forças, como sempre foi seu timbre, para voltar á cara do toiro e arrancar um último pegão, pleno de raça e galhardia, com o hastado a derrotar alto e para os lados, sendo determinante uma grande primeira ajuda de Ivo Carvalho, dando por completo “o corpo ao manifesto” em nome do companheiro, que não se encontrava nas melhores condições. Caído o Ivo, houve ainda um pequeno compasso até à entrada dos restantes ajudas, onde os habituais “alicates” deste extraordinário Forcado aguentaram o suficiente para que os colegas conseguissem entrar. A despedida de um Grande, cuja pega foi antecedida de um sentido brinde a Vasco Dotti, outro da escola do “antes quebrar que torcer”, determinante na carreira do Márcio. Também a ti Márcio o meu sincero e forte agradecimento!

Para encerrar a noite em beleza, outro arquétipo da Arte de Bem Pegar Toiros, Rui Godinho, dono de um temple e de uma parcimónia sem igual, que viu como o Guiomar Cortes Moura partiu de imediato, quando o Forcado estava colocado bem antes de meia praça (recordemos como é pequeno o redondel da “Palha Blanco”), não se atemorizando, deixando o toiro chegar num galope tranquilo à sua jurisdição, carregando e alegrando a investida no momento exacto, antes do encontro final, para reunir sem dificuldades, numa pega tranquila, facilitada pela experiência e serenidade de um Forcado de eleição.

Álvaro Guerra, notável e saudoso Vilafranquense, escreveu um dia, se não estou em erro no seu livro “Eurotauromaquias”: “Há silêncios que ecoam mais fortes que o ribombar de uma tempestade tropical!” Referia-se, creio, aos silêncios da Real Maestranza de Sevilha. Hoje gostaria que tivesse sido um dos afortunados que lotou a “Palha Blanco” até à bandeira, escutando os imponentes e solenes silêncios de critica e expectativa, “sofridos”, os primeiros, por Diego Ventura e, os segundos, maioritariamente, por António Ribeiro Telles. Eu, felizmente também familiarizado com a solenidade da Maestranza, gostaria de dizer-lhe que nunca nenhum silêncio ali vivido me impactou tanto como os sentidos nesta passada Terça Nocturna.

Mas foi sobretudo aquele “OLÉ” que para sempre me ficará na memória, fruto da actuação do mais Clássico e Intemporal de todos os Génios a Cavalo… O texto, como de costume, vai demasiado longo (peço-vos as minhas desculpas e rogo-vos alguma paciência), mas acreditem que muita coisa haveria anda para dizer, de uma noite que foi pura Magia, Sonho e Sentimento…

Vila Franca é terra de aficon exigente, séria, mas também justa e que se sabe entregar como nenhuma outra… Vila Franca foi, é e será sempre ART(e), Vila Franca foi, é e será sempre Emoção!

E por isso é a primeira Praça do país!

 

 

Artigos Similares

Destaques