Nesta fase de arranque da temporada, em que toda a afición fervilha com vontade de ir aos Toiros, de ver as novidades das quadras dos cavaleiros, de rever a maestria dos matadores consagrados, da ilusão em alguns que vêm “marcando passo”, mas que sentimos que é nesta temporada que se irão afirmar, da expectativa depositada em jovens que se começam a impor em importantes cartéis, faria todo o sentido num site taurino abordar algum destes temas.
Há, no entanto, uma questão que prende a minha atenção, questão essa que nem considero propriamente tauromáquica, a Garraiada Académica da Queima das Fitas de Coimbra.
Pensarão os prezados confrades – A que título vem este outsider escrever num site deste tipo sobre um tema que nem sequer considera taurino?! A que se deve este título?!
Nado e criado em Coimbra, senti desde que tenho memória a pujança da Academia e o impacto que tem sobre a vivência nesta cidade. Não é por acaso que é, por tantos, designada a “Cidade dos Doutores”.
Sendo a Universidade de Coimbra uma das mais antigas da Europa, naturalmente que está repleta de história, de tradições, de uma mística singular que tem marcado e inspirado sucessivas gerações de jovens que mais do que os estudos, aqui se fazem Homens.
Uma dessas tradições é o uso da capa e batina, o hábito típico da nossa Academia. A minha referência à capa e batina prende-se com o facto de se tratar de um traje absolutamente eclético e democrático. Todos vestem de igual e serve para todas as ocasiões, desde o uso rotineiro do dia-a-dia, a uma festa de gala para a qual se transforma facilmente num smoking adaptado, em que o colete e gravata não se usam, sendo substituídos por uma cinta e papillon.
É sobejamente conhecido o espírito irreverente e democrático desta Academia, com relevo histórico na denominada “Crise Académica” em 1969, em que os estudantes em protesto fizeram luto académico, não tendo havido sequer Queima das Fitas.
Pois bem, passarei então a explicar a razão de escolher este título e tema que não considero que seja do foro da tauromaquia.
Desde há anos que se assiste a uma tendência de politização dos assuntos relacionados com o associativismo estudantil em Coimbra.
Recentemente, referendou-se a questão da manutenção ou não da Garraiada Académica no programa oficial da Queima das Fitas e foi pública e ostensiva a intervenção de algumas forças políticas radicais na discussão deste tema.
É de lamentar que assim tenha sucedido!
Na gíria académica de Coimbra, a “Cabra” não é um animal, é a alcunha de um dos sinos do ex-libris da cidade, a Torre da Universidade, que dobram no Pátio das Escolas. “A Cabra” é o mais afamado dos sinos, cujo “balir” anuncia o começo e final do dia de aulas.
Faço esta analogia na medida em que, na Universidade de Coimbra, anda tudo às “marradas” por causa da Garraiada, até “A Cabra” já marra…
A Garraiada pode ou não ser considerada um evento taurino, mas certamente não deve ser alvo de interesses políticos. Mas se pode haver intervenção ostensiva de intolerantes activistas e políticos radicais, então também é legítima a participação de aficionados ao mundo tauromáquico…
Nesta conjectura, geraram-se vários movimentos de ambas as facções, com activas e acutilantes campanhas gerando acesas discussões nas redes sociais.
Há, de facto, uma manipulação organizada das mentalidades à custa de informação falsa e enganosa, uma autentica ditadura veganista e animalista, na qual se sustenta um partido politico de filosofia visivelmente intolerante e inquisitória.
Num universo de 24.000 estudantes, apenas cerca de 20% quiseram expressar a sua vontade nas urnas. Registaram somente 5.638 votos, sendo o resultado da votação 70.7% “Não” e 26.7% “Sim”; houve ainda 49 votos nulos e 96 votos em branco.
Analisando imparcialmente este resultado, podemos constatar que “ganhou a abstenção”, dado que a maioria dos estudantes não se interessou sequer pelo assunto, optando por nem participar no referendo. Outra conclusão a retirar é que, dos cerca de 20% que quiseram expressar-se através do voto, a maioria foi desfavorável à inclusão deste evento no programa da mais famosa festa académica nacional.
Parece que os estudantes da “Cidade do Conhecimento” ficaram toldados com todo este cenário e entre festejos de uns e lamentos de outros, esqueceram que o referendo era apenas consultivo, não sendo o resultado vinculativo. O resultado seria apurado pela votação do Conselho de Veteranos e o que se veio a verificar foi que a vitória do “Não” nas urnas foi anulada pela vitória do “Sim” no referido Conselho.
Esta decisão do Conselho de Veteranos acabou por ser impugnada porque se foi detectada uma irregularidade na votação, tendo sido agendada nova reunião.
O braço de ferro que se vinha a travar transformou-se numa caótica batalha verbal, acusando-se uns aos outros de falta de sentido democrático. As forças políticas de cariz anti-taurino e grupos animalistas acicataram esta discussão e nela participaram, num estilo absolutamente radical e insultuoso, indivíduos que não têm qualquer relação com Coimbra e muito menos com a Academia Conimbricense – verdadeiramente lamentável.
A decisão final foi tomada numa segunda reunião de Conselho de Veteranos, que foi ao encontro do resultado da consulta por meio de referendo.
Os movimentos de defesa da preservação do património cultural que são tradições académicas Conimbricenses anunciaram que iriam realizar uma Garraiada Académica a título independente, não integrada no programa oficial da Queima das Fitas.
Na verdade, a democracia Académica não foi sequer beliscada com esta situação, visto que o referendo não tinha efeito vinculativo, mas a decisão do Conselho de Veteranos foi soberana e acabou por reflectir a votação do referendo.
Contestações e interpretações político-sociais à parte, nenhum dos resultados seria dramático para os defensores da preservação das arreigadas tradições da Praxe, já que é legal e legítimo que se organizem Garraiadas em Portugal. Ainda que bastantes estudantes defendam que a Garraiada deva ser excluída do programa oficial da Queima das Fitas, não podem impedir que uma Garraiada Académica se celebre.
Mesmo que sejam muito poucos os que defendem a preservação desta tradição estudantil com mais de um século, devem poder gozar da liberdade para organizar, a título independente do programa oficial da Queima das Fitas e da Associação Académica de Coimbra (AAC), uma Garraiada Académica no Coliseu Figueirense à data e hora costumadas.
Podendo ser diferente no “formato”, não seria uma manifestação festiva estudantil diferente das inúmeras festas, os convívios que se organizam em várias Faculdades em período de Queima das Fitas ou fora dele, os “centenários” das Repúblicas, etc. Esses convívios e festas académicas também não dependem da AAC, nem fazem parte do programa da Queima. Felizmente, está programada a Garraiada Académica que se adivinha que venha a ser um sucesso, como sempre foi!
A Garraiada não é política, a Associação Académica de Coimbra não deve ser política, deve sim defender os ideais e perpetuar um riquíssimo património cultural.
As tradições desta ancestral Academia são a sua própria identidade, sendo a Queima das Fitas o auge! A Queima é em Coimbra, o resto são fitas…
António Bentes – “Rato Atómico”, um dos maiores jogadores de futebol da “Briosa”, quando questionado porque rejeitou a transferência para um dos “três grandes” respondeu: “É simples, meu amigo, o ambiente de Coimbra não tem igual em qualquer outra parte. Por muito bem que me desse em Lisboa ou no Porto, não esqueceria a Académica e a rainha do Mondego. Coimbra é Coimbra! Nós, os estudantes, temos qualquer coisa que nos prende à sua história boémia, ao seu passado de Mãe dos Estudantes…” Estas palavras explanam bem o encanto da vida Académica da “Cidade do Conhecimento”.
A Garraiada da Queima não é uma tourada. Aliás, a parte “formal” já foi abolida (e bem, na minha opinião!). É uma Festa Académica integrada numa semana de celebrações, festividades e eventos variados, como a Serenata, o Sarau, o Baile de Gala, o Chá Dançante e as Noites do Parque, num ambiente ímpar, constituindo uma Queima das Fitas cujo “sabor” só é sentido e reconhecido pelos os que a viveram.
A Garraiada não começa com a abertura das portas da Praça da Figueira da Foz, nem sequer nas bilheteiras; a Garraiada começa na véspera, na combinação da viagem, no pequeno-almoço depois de uma longa “noite do parque” ou do Baile de Gala, na estação de Coimbra-B, as farras num comboio apinhado de capas negras, nas sestas reparadoras na Praia da Luz, nas cervejas a acompanhadas com tremoços, amendoins e, num excesso, um pires de camarões, no Coliseu Figueirense “cheio até à bandeira” de capas e batinas, um manto negro nas bancadas polvilhado pelas fitas garridas de cores variadas e sucessivas símbolos dos diferentes cursos, nos fitados desfilando na arena num delírio banhado com lágrimas de despedida de uma intensa vida Académica com fim já à vista, no êxtase das bancadas quando um estudante mais afoito pega a vaca ajudado pelos amigos, na organização do regresso a Coimbra e, para os mais boémios, na combinação do jantar e da noite que se segue.
Escrever sobre isto faz-me sentir de novo as dores nos pés ao fim do dia, um dia tão longo com os sapatos mais estimados, seleccionados para o Baile de Gala, do “sacrifício” que era regressar a Coimbra e não ceder a tentação de uma noite revigorante de sono, forçando o corpo e a alma para mais uma noitada no Parque.
Ainda bem que forcei todos os dias e noites dos seis anos da licenciatura, a mais longa, mas que hoje me parece ter sido curta. Porque as seis Queimas das Fitas que vivi enquanto estudante, guardo-as na memória e no coração, com saudade e alegria.
Escreveu o Poeta e meu digníssimo colega anestesista, Dr. Francisco Bandeira Mateus, a letra da famosa Balada da Despedida do VI ano Médico 1958-59: “Coimbra tem mais encanto na hora da despedida”.
Esperemos que ideais como a Liberdade se mantenham como pedras basilares da vida Académica de Coimbra e que cada um seja livre de escolher ir ou não à Garraiada.
Desejo vivamente que as nostálgicas palavras do refrão da Balada da Despedida não se venham a aplicar à Garraiada e que as futuras gerações possam viver tudo aquilo que nos pudemos viver.
Pela defesa das tradições e pela defesa da identidade da Academia sai um sentido EFERREÁ!!!
Dura Praxis, sed Praxis… Olé!